quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

se eu fosse escritora


- talvez eu tivesse que seguir protocolos e assuntos específicos que o métier exige e que me deixariam mais atrativa e cool; 
- ia  ter que passar pela angústia de ter que ser lida e apreciada; 
- eu teria que enfrentar os estetas, os críticos e os adestradores de palavras que realmente "sabem escrever"; 
- não ia poder usufruir o "saber e o sabor" das palavras e nem inventar vocábulos mequetrefes que causassem constrangimento ao próprio Guimarães Rosa; 
- jamais poderia me equivocar indiscriminadamente; 
 E é por isso que eu escrevo o meu diarínho, cheio de erros de concordância. Porque em mim, quase nada concorda. E porque não terei filhos que se lembrem de meus feitos "heróicos".
Sou uma reles observadora umbiguista. Aceite ou não. 

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

menarca

estava brincando na rua e já vinha sentindo muita dor no ventre. Fatídicos 12 anos. O sangue veio no xixi entre uma parada e outra. A tinta espalhou-se feito aquarela no vaso e com ela, uma dor lancinante. Pareciam agulhas abrindo sistematicamente uma ferida no meu útero. Uma ferida que nunca mais ia sarar.
Minha mãe me obrigou a usar uma saia que eu odiava. Era branca com rosas minúsculas em tom rosa bebê e sobre a calcinha, um absorvente que mais parecia um tijolo macio.
Meu modo de andar denunciava o novo estado: uma-garota-mutante-mulher-sofredora.
Seria aquela sensação dolorosa e desfavorável, a transformação em mulher que eu tanto tinha almejado? Era só nisso que eu pensava. Além de ter que depilar os pelos com cera quente feito a lava dos infernos profundos.
A dor não parava com nenhum remédio. Eu só queria morrer.
Ficou cravado: teria que sentir aquilo todos os meses da minha vida a partir daquele instante.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

armadilha

no meio da faxina congelei admirando a teia. Não pude desfazê-la de pronto. Tornou-se mais urgente admirá-la: petrificada. Olhando cuidadosamente pude verificar um inseto minúsculo. Era possível imaginar sua luta durante horas tentando desprender-se. Seu corpo movimentando-se delicadamente e morrendo no balanço do material flexível...
É como me sinto: um minúsculo animal preso em uma teia invisível. A diferença é que eu também sou a aranha.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Filtro miocardinal

da plateia eu te vejo tentando espalhar a base com fator de proteção 60. Dá pra ver as lágrimas empoçadas embaixo dos olhos e a tentativa de embargar a saída. É em vão. Deixando ir existem mais chances de que tudo isso parado não apodreça dentro de ti. Deixando ir talvez você possa sentir o que os iluminados sentem. Deixando ir talvez passe essa azia. O coração quer cometer novos erros. Deixa ele seguir em frente. Só isso.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

adeus menina

quando eu tinha doze, minha mãe me alertava: "menina, se economize, pra não enjoarem da sua cara". Daí eu acreditei. Levei como mantra. Virou uma crença. Informação grudada no osso. Quando eu cresci, tomei banho com bucha de aço. Raspei com faca de pão. Rasurei com unhas afiadas. Nada deu jeito. Nem auto-hipnotize. Resolvi ficar em silêncio. Eu sei que meu corpo vai falar e arrumar um jeito de esquecer esse engôdo. E daí, quem sabe, essa impressão estranha de que tem alguém me estrangulando passe. Daí, quem sabe esse saco de pedras que eu carrego fure e todas elas saiam rolando pra nunca mais.

domingo, 15 de fevereiro de 2015

para Oxum

vou banhar-me de dourado
intentando encharcar-me
com a doçura de teu amor transparente
a purpurina entranhada será uma armadura
será feito ímã que atrai só a verdade
iluminada com a certeza de que errar é patrimônio universal
nenhum crivo faz sentido quando a reflexão é certeira
O sol cegará qualquer julgamento que me coloque em lugar de superioridade
Beija-me com tua confiança, abraça-me com tua beleza,
guia-me com tua humildade
também sou tua





sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

...

sonhei que você vinha me buscar de carro e quando eu descia você me olhava forte. Me beijava minuciosamente com a intenção de alcançar todos as células da minha boca. Em silêncio, apontava a porta do carro. Eu andava e obedecia. Você entrava, colocava o cinto, acendia o malboro "light" de costume me olhando com deferência. Ligava o carro resoluto como se soubesse para onde ir. Parava em um lugar lotado. Abria a porta do carro, me puxava pela mão, estudava o local mais tumultuado e me beijava como se o beijo fosse uma atração ensaiada para uma plateia bem pouco relevante. Terminado o beijo, você puxava a minha mão e tudo recomeçava num eterno lopping. Foi nesse ponto que entendi que estava num sonho. Chamam isso de sonho lúcido. Nesse caso eu chamo de sonho ilusório porque sabemos que decisão não é seu forte. Pena. Me lembrarei do teu nome daqui a um ano?!